Alejandro Terán-Somohano   
“Word on fire”, 22 de maio de 2025  

Numa das suas observações mais chestertonianas, Chesterton escreveu: “Há uma lei escrita no mais obscuro dos Livros da Vida  e é esta: Se olharmos para uma coisa novecentas e noventa e nove vezes, estamos perfeitamente seguros do que vimos; se olharmos para ela pela milésima vez, corremos o risco de a ver pela primeira vez.” 

A “Noite Estrelada” de Vincent Van Gogh é talvez a obra de arte mais reproduzida que existe, uma que todos nós já vimos centenas de vezes. Só em minha casa, podemos encontrá-la em livros, em calendários e em várias cópias que os meus filhos tentaram fazer. Enquanto ajudava a minha filha de seis anos a construir a versão LEGO, do quadro que recebeu no Natal (que inclui uma versão LEGO de van Gogh, com uma tela em miniatura de “Noite Estrelada”), olhei para ela pela milésima vez, ou seja, pela primeira vez. 

Pintada em junho de 1889, enquanto Van Gogh estava internado no asilo Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy, parece ter pensado muito pouco nela, mencionando-a brevemente em algumas das suas cartas, num caso até de forma depreciativa: “No entanto, mais uma vez estou a permitir-me fazer estrelas demasiado grandes, novo contratempo, e já estou farto disso,”diz.  

Van Gogh nunca teria pensado que  o seu cenário nocturno se tornaria uma das suas mais apreciadas obras. Os seus méritos artísticos são indubitáveis - as pinceladas rodopiantes que transcendem o meio estático e impregnam o quadro de movimento; o uso magistral da tonalidade e do contraste de cores complementares, através do qual as estrelas parecem ser feitas de luz real; a composição que opõe a aldeia serena e adormecida ao céu noturno vivo e flamejante - mas eu já tinha visto tudo isso novecentas e noventa e nove vezes. O que apareceu diante dos meus olhos pela milésima vez foi a verdade mais profunda que estava a brilhar através dela, a verdade que se tinha tornado velada por tê-la visto múltiplas vezes.  

Há uma certa visão do mundo que se orgulha de ser científica, mas que se baseia mais numa falsa filosofia do que na ciência e J.R.R. Tolkien descreveu-a assim:   Andas pela Terra e caminhas com passo solene 
Um dos muitos planetas menores do Espaço,
Uma estrela é uma estrela, uma matéria numa bola
Compelida a percursos matemáticos
No meio do regulamentado, do frio, do inane,
Onde predestinados átomos são mortos a cada momento  

A afirmação deste cientismo reducionista é que a Terra é um rochedo insignificante que se lança num vazio infinito e frio. Não há nada de especial na Terra, nem nada de especial nos seres humanos. O universo em si é fruto de flutuações aleatórias, de forças que puxam e empurram coisas, de partículas que colidem num processo interminável e aleatório regido pelas leis férreas da natureza. A ordem do cosmos, a sua beleza, é simplesmente uma ocorrência casual, um resultado sem sentido.  

CS Lewis no primeiro livro “ Space Trilogy” oferece-nos uma crítica maravilhosamente redigida sobre este ponto de vista:  Ele tinha lido muito sobre o “Espaço  e era perseguido pelo pesadelo, há muito engendrado no pensamento moderno pela mitologia que segue o rasto da ciência. Ou seja, durante anos, nas profundezas do seu pensamento, estava latente  a fantasia sombria da vacuidade negra e fria, a morte total, que supostamente separava os mundos. Ele não tinha tido a consciência de como essa visão o afectava,  até ao momento em que o nome “Espaço” parecia uma calúnia blasfémica para esse oceano empírico de brilho”. . . . Não: espaço era o nome errado. Os pensadores mais antigos tinham sido mais sábios quando lhe chamaram simplesmente os Céus – os céus que declaravam a glória –   

“Num lugar paradisíaco  
Onde o dia nunca fecha os olhos
Nos amplos campos do céu”.  

Este “oceano empírico de brilho” é exatamente o que Van Gogh captou na sua pintura! Nele, vemos que os céus não são um deserto escuro e vazio, mas estão repletos de luz - mesmo que a maior parte dessa luz não seja visível a olho nu. Vladimir Soloviev, o filósofo russo, teólogo e discípulo de Fiódor Dostoiévski, defendia que a beleza era a personificação daquilo a que chamava “Ideia”, ou seja, “a liberdade absoluta das partes constituintes num todo unificado e perfeito”. Tudo o que incorpora esta unidade na diversidade, este todo harmónico, é belo.

Para Soloviev , a luz é manifestação desta “unidade universal” e, por isso, o céu “é belo em primeiro lugar como imagem da unidade universal, como expressão de exultação serena, a vitória eterna do princípio da luz sobre a confusão caótica”. De uma forma mais intensa, um céu estrelado realiza a interação ideal de unidade e da variedade: “A unidade universal e a sua manifestação, a luz, numa multiplicidade de focos independentes, abraçados, no entanto, por uma harmonia geral - aparecem na beleza de uma noite estrelada.”

Porque “A Noite Estrelada” é uma obra de arte genuinamente bela, não pode deixar de dizer a verdade - mesmo uma verdade que o seu criador possa não ter pretendido totalmente, porque é uma verdade religiosa.

Podemos ir mais longe. Sim, os céus não são escuros e vazios; na sua luz, devemos ver a “vitória do princípio da luz sobre a confusão caótica” - ou seja, devemos ver que o universo não é um acaso aleatório e arbitrário, mas uma criação intencional e, portanto, que nele podemos ver a sabedoria do seu Criador, tal como canta o salmista:  

“Os céus declaram a glória de Deus;  
o firmamento proclama a obra das suas mãos.
Um dia fala disso a outro dia;   
uma noite o revela a outra noite.  
Sem discurso nem palavras, não se ouve a sua voz.  
Mas a sua voz ressoa por toda a terra,   
e as suas palavras, até os confins do mundo”. 
Salmos 19:1-4  

Não ver que todas as coisas apontam para além de si mesmas, que têm um sentido que transcende o meramente factual, não é um ganho de objetividade e de compreensão científica. É antes tapar os ouvidos à mensagem sem voz de que fala o salmista. É ver falsamente: uma perda de visão, uma percepção degradada.  Tolkien explica-o poeticamente:  

Não se trata de uma rejeição da ciência, mas sim de uma libertação da ciência de uma falsa filosofia e de uma teologia errada. Esta filosofia materialista tinha-se apoderado do mundo ocidental durante a vida de Van Gogh, e ele não estava livre da sua influência. 

A “Noite Estrelada” não deixa de ser ambivalente. Seria um erro de interpretação afirmar que se trata de uma obra religiosa. Van Gogh tinha abandonado as ideias religiosas da sua juventude e declarou explicitamente que “Noite Estrelada” não implicava um regresso à religião. No entanto, Van Gogh também admitiu ter pesadelos com ideias religiosas: “Espanta-me que, com as ideias modernas que tenho, sendo eu um admirador tão ardente de Zola, de De Goncourt e de outras coisas artísticas que as sinto tanto, tenha crises como uma pessoa supersticiosa teria, e que me venham ao pensamento ideias religiosas confusas e atrozes como nunca tinha tido antes. O tempo que passou no asilo, instalado num antigo mosteiro, teve o efeito de reavivar algumas das inclinações religiosas da juventude de Van Gogh  

Toda a representação tangível  de um objeto ou  fenómeno considerado do ponto de vista do seu estado final e definitivo, é uma obra de arte    

Na “noite estrelada “encontramos dois pontos de vista contraditórios e antagónicos. O cipreste, que domina o lado esquerdo da tela, era, no meio mediterrânico de Saint-Rémy, um símbolo da morte. É a árvore que se encontra nos cemitérios.
A sua presença imponente sobre a aldeia pacífica e adormecida projecta a sombra da morte sobre ela e lembra-nos a luta pessoal de Van Gogh contra a depressão e os pensamentos suicidas, uma luta que perdeu tragicamente pouco mais de um ano depois de pintar “Noite estrelada”. E, no entanto, existe aquele céu estrelado - um céu que está para além do alcance da morte. Um céu que não é a escuridão de um vácuo, do nada, mas é composto de infinitos tons de azul que se recusam a ceder à escuridão: são um oceano de luz. Porque “Noite Estrelada” é uma obra de arte genuinamente bela, não pode deixar de dizer a verdade - mesmo uma verdade que o seu criador pode não ter totalmente apreendido, porque é uma verdade religiosa. 

Esta noção pode confundir aqueles que pensam que a arte é apenas uma “expressão pessoal” ,o desvendar da individualidade do artista. Os gregos compreendiam melhor o esforço artístico na sua crença de que havia um toque do divino no artista. O artista não se exprimia a si próprio, mas sim o que as Musas lhe inspiravam. Nesse aspecto, o artista estava próximo do profeta. Podemos recorrer a Soloviev para uma expressão cristã da mesma ideia: “Agora podemos dar uma definição geral da verdadeira arte na sua essência: toda a representação física  de qualquer objeto e fenómeno do ponto de vista do seu estado final e definitivo, ou à luz do mundo que está para vir, é uma obra de arte.” 

A verdadeira obra de arte mostra-nos as coisas como Deus as vê. O que Van Gogh vislumbrou na sua imaginação e transmitiu em pinceladas grossas é a mesma verdade que o salmista cantou, Lewis descreveu e Tolkien declarou. Ele captou os céus da perspetiva do céu. Mostra-nos o seu verdadeiro aspeto, o seu “estado final e definitivo”. 

Esta sua visão é, no entanto, filtrada pela sua experiência, pela sua doença mental, pela sua fé perdida. Ele questionava-se sobre o que o salmista tinha perguntado numa outra ocasião: “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas que preparaste; Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites?”(Salmo 8:3-4). O suicídio de Van Gogh, infelizmente, mostra-nos que a sua resposta a essa pergunta não era a mesma que a do salmista: Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste.Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: (Salmos 8:5-6).

Oprimido pelo cipreste, Van Gogh foi vencido pelo vazio e perdeu de vista as estrelas, mas deixou-nos o testemunho de uma verdade que, ainda que por breves instantes, ele conseguiu ver.  

Tradução livre de 
Maria do Rosário H. Mckinney