Queridos amigos,

«Para onde é que eu vou, não sou cobarde

Não vou deixar a vida para mais tarde.

Ponho-me a andar para encontrar Vida.

Se não sei onde vou, ando à deriva!»

(Música dos campos de férias dos Gambozinos)


Chegados a Portugal, depois de 8 dias de missão, há tanto para contar e tanto para agradecer!

É comovente ver como Deus é o Senhor e o protagonista desta Missão de Resgate dos Refugiados Ucranianos. Jesus já nos resgatou e continua a resgatar hoje e sempre, por meio da Igreja. É tão evidente que esta missão não foi obra nossa, mas dEle!  

Recordo como esta missão começou. A interpelação da guerra e o desejo de paz levou-nos ao jejum e à vigília de oração na Quarta-Feira de Cinzas, início da Quaresma, com a comunidade da Ericeira e da Carvoeira a participar em peso. Logo no dia seguinte, veio a chamada do meu amigo Miguel Serra a pedir que rezasse por ele, porque iria partir numa missão de resgate de refugiados ucranianos. Fiquei com uma enorme vontade de partir também. E logo depois, na 6ª feira, veio a conversa com uma paroquiana ucraniana que pediu ajuda para trazer os seus familiares para Portugal. De alguma forma, Deus chama-nos pelas circunstâncias que tocam o nosso coração. Aqui as chamadas foram literais, pois o meu contacto foi disponibilizado nas redes sociais da comunidade ucraniana em Portugal através de Facebook e WhatsApp, de tal forma que durante o fim-de-semana de 5-6 março recebi mais de 70 chamadas de números desconhecidos. Percebi que eram chamadas de irmãos ucranianos, mas não as pude atender, pelo que apenas devolvi quase todas as chamadas no Domingo à noite, com a ajuda preciosa dos voluntários do FAROL – obrigado aos Faroleiros e à Teresa e ao Henrique, à Diana e à Elisa. Dessa ronda de chamadas, veio uma primeira lista de contactos e pedidos de transporte para Portugal. Veio também a consciência da necessidade de uma resposta articulada e coordenada – obrigado à PAR e à associação We Help Ukraine – e a urgência da reacção, perante o desespero de tantos e o perigo de tráfico humano, raptos e abusos. Foi o primeiro sinal.

Com a lista feita, veio a pergunta: «E agora, Senhor, que queres que eu faça?» Na oração, pedi um sinal. «Se o padre Miguel me falar da Polónia na meditação que está a pregar, eu vou.» Bom, é verdade que não falou bem da Polónia… mas por três vezes falou do Papa João Paulo II e isso serviu-me de sinal. Foi o segundo sinal. Estava disponível para partir, se tivesse autorização do nosso Patriarca. Ao telefone, recebi essa autorização, se eu achasse mesmo que deveria ir. O padre Jacinto, a Teresa e a Ana (obrigado aos três!) garantiam o normal funcionamento diário das Paróquias. Já só faltava tudo o resto… Surgiu a possibilidade de nos juntarmos à equipa do Nuno Rebocho e da Associação de Serviço e Socorro Voluntário de S. Jorge, de Porto de Mós, a quem tanto agradecemos pelos conselhos dados e disponibilidade permanente. Acabámos por integrar outra missão, mas com muita amizade e entreajuda. Aliás, ao longo do caminho fomos ouvindo e aprendendo muito com as experiências de outros, como o Francisco Forero e seus amigos. Obrigado pelo vosso exemplo tão inspirador!   

Vieram então as graças em catadupa em poucas horas. São tantas e tão extraordinárias que fico arrepiado enquanto escrevo. A vice-presidente Aldevina manifestou o interesse da Câmara Municipal de Mafra em apoiar esta missão, disponibilizando talvez um autocarro na comitiva e na logística da Liga dos Bombeiros Portugueses, que iria partir na 5ª feira rumo à fronteira da Ucrânia com a Polónia para levar bens, mantimentos e ambulâncias. A Cityrama, a quem tanta gratidão devemos, com a intercessão do José António Lufinha, amigo da minha família (obrigado!), cedeu rapidamente duas carrinhas de 9 lugares. A equipa de missionários foi sendo escolhida e cada um chamado a dedo, alguns para permanecer e ajudar a partir de cá e outros para partir até à Polónia. A Diana e a Elisa foram chamadas desde o início, pela importância de serem mulheres e precisarmos de conquistar a confiança das mães e crianças que iríamos transportar; o Dirk aceitou o convite logo depois da Missa das 19h de 3ª feira em Fonte Boa dos Nabos; o José Maria Monteiro aceitou na chamada ao telefone às 23h dessa 3ª feira; o Manuel Silva apareceu caído do céu na 4ª feira de manhã no quartel dos Bombeiros de Mafra, como resposta à nossa preocupação por encontrar voluntários que falassem polaco, ucraniano e percebessem de mecânica automóvel – era três em um!; o Carlos Trindade, coordenador da Protecção Civil do Concelho de Mafra, foi destacado nessa mesma reunião; a Teresa (minha irmã) e o Manel (meu cunhado) quiseram vir, mesmo sem saber bem ao que vinham; nesse dia, tivemos ainda a confirmação de duas pessoas fundamentais nesta missão, a Mayya e a Hanna, ucranianas a residir em Portugal já há muitos anos e tradutoras desde a primeira hora; finalmente, a surpresa final estava reservada para 5ª feira de manhã, na hora da partida no quartel dos Bombeiros, com a doença de um voluntário e a disponibilidade surpreendente do Manel Magalhães, marido da Mayya. Por meio de cada um dos voluntários, agora amigos, é impressionante ver como Deus agiu, com as virtudes e defeitos que temos, para que Se manifestasse mais claramente o Seu poder. Obrigado a cada um dos voluntários!

Com esta equipa de doze (apóstolos), em três carrinhas (como a Santíssima Trindade), suportados pela generosidade da oração, dos donativos em dinheiro e dos bens que nos doaram – obrigado a tantos ucranianos e portugueses generosos aqui na Ericeira, Carvoeira e até Almeirim (!) – levámos esses bens até aos Bombeiros, que os transportaram em melhores condições até à Polónia. Assim, cheios de entusiasmo, fizemo-nos à estrada na 5ª feira de manhã (dia 10 março). Agradecemos muito a cada pessoa que nos acompanhou neste caminho e a todos os benfeitores com quem nos cruzámos, em cada estação de serviço onde celebrámos Missa ou no hotel em Frankfurt. Aí ainda pude vier a Providência de Deus a dar-nos um autocarro da companhia Bus to Travel, por avaria do autocarro dos Bombeiros, com intercessão do Arlindo (meu amigo e colega do tempo do seminário), do Nuno e do Gil. Finalmente chegámos à Polónia no sábado, já com muito trabalho feito pelo caminho, entre a vigilante condução, manter o contacto com os refugiados para actualizar a lista de transporte e encontrar suporte logístico para toda a operação de resgate dos 50 refugiados.

Escolhemos o Papa São João Paulo II como nosso intercessor e ele logo nos ajudou por meio de quatro polacos preciosos: através do padre Piotr, do padre Mieszko, do Daniel e da Dorota, que nos permitiram encontrar um lugar de refúgio fundamental no ginásio da escola S. João Paulo II em Luczyce, nos arredores de Cracóvia. Aí esteve uma equipa de voluntários locais, da escola e da paróquia – incluindo o grande Marcos, português lá residente e a quem tanto agradecemos também – cheios de generosidade a ajudar-nos no acolhimento aos refugiados que fomos buscando em cada lugar na Polónia: a todos na Polónia, dziękuję! É impressionante ver como houve tanta entreajuda nesta missão e como fizemos tantos amigos em tão pouco tempo! Com ajuda de outros voluntários no terreno – como o Rui Santos – ou em Portugal – como a Natália – fomos identificando e trazendo os refugiados. A todos estes voluntários e aos outros que encontrámos pelo caminho, o nosso sentido agradecimento também.

Deus faz muitas surpresas e reservou-nos mais uma: em vez de 50, acabámos por trazer 101 refugiados, entre mulheres, crianças e idosos! Com ajuda do Google Tradutor (obrigado, Google!), conseguimos falar mais facilmente uns com os outros. E eles surpreenderam-nos porque nos ensinaram a confiar, a esperar, a deixar tanto para trás corajosamente para refazer a vida, a superar dificuldades, a não guardar ressentimento contra os agressores, a sorrir e até a brincar no meio da dor, a rezar, a partilhar, a não se queixar. Nem uma vez ouvi queixumes ao longo do caminho, apesar de tantas tribulações. Recordo especialmente a pequena Vicka, de 7 anos, que a todos abraçava e que um dia recebeu um chocolate e foi a correr dar a outro menino. Recordo também a primeira Missa celebrada com os refugiados na escola de Luczyce, no Domingo de noite, com as crianças tão atentas e de joelhos ao pé do altar improvisado. Os refugiados ensinam-nos muito e a eles devemos enorme gratidão: Дякую!

No caminho de regresso, vieram mais tribulações e mais graças! Uma das nossas carrinhas teve um acidente, que não teve maior gravidade por milagre de Nossa Senhora da Boa Viagem. Mais à frente, por precaução, a polícia alemã mandou parar o autocarro polaco em que seguiam outros do nosso grupo de refugiados – que entretanto tínhamos fretado para nos levar até França, onde teríamos o autocarro dos Bombeiros já reparado – e esperámos nove horas numa estação, enquanto este era reparado. Aí na estação aproveitámos a celebrar a Missa com alguns refugiados pedindo a мир – a paz – com as crianças a cantar e a levar uma vela acesa. Fomos acolhidos e passámos a noite de 3ª para 4ª feira numa escola sob o cuidado da Protecção Civil Alemã de Bühl, a quem agradecemos também: Vielen Dank!

Na 4ª feira de tarde fomos recebidos pela comunidade portuguesa e francesa de Beaumont, em Clermont-Ferrand. Foi impressionante ver a alegria e a hospitalidade desta comunidade, preparada desde o dia anterior para a passagem dos refugiados. À Anna, ao Maire Jean-Paul Cuzin, ao padre Yesuraja e a tantos voluntários muito agradecemos também: merci beaucoup! Deixo-vos um vídeo desta surpresa e partilho convosco a vontade de lá voltar.

Finalmente, seguimos caminho e passámos uma noite difícil em Írun, dormitando no autocarro e nas carrinhas num parque de estacionamento. Foi talvez o momento que faltava na nossa missão: experimentámos todos juntos com os refugiados aquela tribulação e cansaço e sentimo-nos todos assim refugiados carentes de abrigo seguro. Nessas condições celebrei Missa às 6h da manhã, à chuva, num banco de jardim em Írun, na companhia de mais uma jovem mãe refugiada e de duas voluntárias. Deus estava ali como nosso abrigo: Deus é bom! Бог добрий!

Nessa manhã cedo, recebemos um fantástico pequeno-almoço gratuito, oferecido pelo café-bar do Enrique e pelos seus colaboradores. E à noite recebemos outro jantar gratuito do Hostal Los Chopos! Foi assim a Providência e a generosidade de tantos ao longo do caminho: muchas gracias

Finalmente, seguindo com a coluna dos Bombeiros, liderados pelo Comandante João Pereira – a quem muito agradecemos, bem como a toda a equipa de várias corporações! – chegámos em segurança a Mafra pelas 3h30 da madrugada de 5ª para 6ª feira, já no dia 18 março. Foram mais de 7.000 km percorridos com a protecção de Nossa Senhora da Boa Viagem, a quem tanto recorremos e rezámos o Terço ao longo do caminho! Obrigado, Mãe!

Celebrámos a chegada com a Eucaristia – Acção de Graças – no Quartel dos Bombeiros às 5h da manhã com muitos bombeiros. Foi emocionante descobrir como a nossa missão – como as outras – foi resposta de Deus à oração de tantos e tantos. A Missa é alimento a missão!

Depois de umas horas de sono, na manhã de 6ª feira, as equipas dos serviços de Acção Social da Câmara Municipal de Mafra, com ajuda da Santa Casa da Misericórdia de Mafra e Venda do Pinheiro trataram da parte legal e asseguraram o transporte de todos os refugiados até casas de familiares. Foi um grande trabalho conjunto: Obrigado à Câmara de Mafra e especialmente à querida vice-presidente Aldevina!

Agora a missão não acaba aqui. Muito há por fazer lá na Ucrânia e na Polónia e cá, para que a paz vença e para que os refugiados ucranianos possam ser acolhidos, enquanto for preciso, aqui em Portugal, na Ericeira e na Carvoeira, com toda a hospitalidade cristã. Esta é uma Quaresma diferente, em que todos somos chamados à conversão de coração e a um renovado empenho pela paz, à luz da Páscoa da Ressurreição de Jesus. Estes irmãos ucranianos precisam de nós e Deus conta a nossa disponibilidade e faz o resto!

O Carlos dizia muitas vezes “não há heróis”. De facto, como no Evangelho, reconhecemos que «somos servos inúteis: apenas fizemos o que devíamos fazer» (cf. Lc 17, 10). Tudo isto foi obra de Deus.

Assim termino com o hino da nossa missão (e se quiserem podem procurar a tradução no Google Tradutor!):

Bog Dobbryy

Slava yomu

My hochemo myru

Dobroho ranku

Prymyrennya

Usi razom

Usi razom

Vstavay idea

 

Дякую! A gratidão transborda do coração e chega a todos aqueles que nos apoiaram nesta missão e também àqueles que não deixam deixaram que o seu nome fosse aqui referido!

Padre Tiago

Ericeira, 20 março 2022