Artigo de opinião | «Os Impérios do Espírito Santo» – A piedade popular ainda tem futuro?
12 de setembro de 2021

Artigo de opinião do Pe. Tiago Fonseca

Se é certo que a piedade popular não está isenta de erros teológicos e é criticada por constituir mera fachada, é certo também que ela pode ser expressão de uma medida que ainda não alcançámos e que convida à conversão pessoal e comunitária  

Neste verão de 2021, ainda marcado por tantas limitações e planos de contingência, tive oportunidade de visitar a ilha Terceira com toda a família. Entre pais, irmãos, cunhados e sobrinhos éramos 31! Foi uma graça enorme poder descansar, rezar e passear pelas ruas e igrejas de Angra do Heroísmo, subir o Monte Brasil com vista para a cidade, fazer os trilhos a pé na Serreta ou na Rocha do Chambre, entrar no Algar do Carvão, ver os golfinhos ou tomar banho nas belíssimas zonas balneares da ilha.  

Ao longo da semana, várias vezes me deparei com uns pequenos templos coloridos, espalhados por tantas povoações da ilha: os impérios do divino Espírito Santo. São mais de setenta impérios que servem de mote para este artigo sobre a importância da piedade popular no despertar da fé e no renovado empenho comunitário que a superação desta pandemia exige. Ao redor desses impérios decorrem as festas do Espírito Santo, sobretudo durante o tempo pascal, com uma marca religiosa e profana. Sendo a festa um sinal da memória grata e da fé do povo e sinal visível da alegria – dom do Espírito Santo –, será bom reconhecer estas oportunidades de evangelização, por vezes desvalorizadas em certos grupos dentro e fora da Igreja. A limitação e redução significativa das procissões e festas dos santos populares desde o início da pandemia torna-se também ocasião de reflexão sobre a importância desta forma de manifestação da fé: a piedade popular ainda terá futuro?

No seu primeiro ano de pontificado, o Papa Francisco escreveu em novembro de 2013 a exortação pós-sinodal “A Alegria do Evangelho”, na qual identificava já a crise do compromisso comunitário – agravada ainda mais pela pandemia, que trouxe mais solidão, pobreza e desigualdade – e os desafios que a Igreja enfrenta a evangelizar a cultura e a sociedade. Nesse contexto, o papa destacava a importância da piedade popular como testemunho da fé recebida, transmitida e encarnada na cultura, como um lugar teológico fundamental para a nova evangelização (cf. Papa Francisco, Evangelii Gaudium, #122-126). Se é certo que a piedade popular não está isenta de erros teológicos e é criticada por às vezes constituir mera fachada – não havendo unidade entre o que se celebra e se manifesta com maior ou menor aparato exterior e o que se vive interiormente –, é certo também que ela pode ser expressão de uma medida que ainda não alcançámos e que convida à conversão pessoal e comunitária. Além disso, a piedade popular respeita a tradição e a história, que importa preservar como sinal identitário de um povo. Como escrevia G. K. Chesterton, «tradição significa dar o voto à mais obscura de todas as classes: os nossos antepassados. É a democracia dos mortos» (cf. G. K. Chesterton, Ortodoxia). Mais, a fé da Igreja, por assentar numa história e num facto de dois mil anos, não pode esquecer que somos herdeiros e seguidores das pegadas e do caminho de fé dos que já morreram. Porém, na fé da Igreja dever-se-á sempre conciliar o peso dessa tradição com a abertura à novidade permanente do Espírito que sopra onde quer, mas sem cair na altivez de achar que o antigo está ultrapassado.

Ora, toda esta reflexão vem a propósito dos impérios na ilha Terceira. É interessante a investigação sobre a origem histórica desta devoção ao divino Espírito Santo nos Açores. Segundo o artigo de Paula Noé (cf. Paula Noé, Os impérios do Espírito Santo na ilha Terceira), há quem a atribua ao papel da missionação franciscana nos Açores, ainda que outros historiadores sustentem que tal devoção se deve à autoridade da Ordem de Cristo, a quem foi confiada a jurisdição espiritual das ilhas dos Açores pelo Papa Calisto III, até à fundação da diocese do Funchal em 1514. Seja qual for a Ordem religiosa, quer a Ordem Franciscana, sobretudo na corrente dos “franciscanos espirituais”, quer a Ordem de Cristo – sucessora da Ordem do Templo, extinta por D. Dinis – foram marcadas pelo pensamento de Joaquim de Fiore, essencial para o florescimento da veneração ao divino Espírito Santo. Este abade cisterciense (1131-1202) defendia um ritmo progressivo e trinitário da história: à época mais severa do Pai, no Antigo Testamento, teria sucedido a era do Filho, no novo Testamento e na fundação da Igreja; porém, o pensamento milenarista de Joaquim de Fiore apontava a chegada a nova idade do Espírito Santo, na qual a estrutura hierárquica da Igreja seria superada por uma nova Igreja do Espírito, mais livre segundo o estilo das novas ordens mendicantes, num período de paz e reconciliação entre todos os povos. A este propósito, vale a pena ler a catequese do Papa Bento XVI de 10 de março de 2010. Embora estas ideias milenaristas, apocalípticas e anárquicas tenham sido rejeitadas pela Igreja e pelos próprios superiores da Ordem franciscana, como S. Boaventura, elas tiveram inegável influência no pensamento da época. É curioso ver como “Deus escreve direito por linhas tortas” e a partir desta heresia joaquimita se promoverá justamente uma maior devoção à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

Segundo o mesmo artigo de Paula Noé, o culto ao divino Espírito Santo está documentado na ilha Terceira desde 1492. Desde então se festeja o Espírito Santo no tempo pascal com a edificação de um império, que passou a ser uma estrutura fixa apenas em finais do século XVIII. A festa consiste na procissão para a coroação de um imperador (criança ou adulto, com coroa e ceptro) a cada semana, seguida da Missa dominical e depois o bodo (banquete composto por vários animais sacrificados, cuja carne benzida pelo sacerdote é retalhada e serve para a sopa, o cozido e a alcatra), partilhado entre todos os irmãos membros da confraria. Ao longo de cada semana, há ainda momentos de oração e festa popular, com as touradas, cantorias e distribuição de esmolas. Tal experiência da fraternidade e da partilha entre os irmãos da comunidade, ricos ou pobres, emigrantes ou residentes, corresponde à verdadeira dimensão da caridade e da catolicidade da Igreja, marca do Espírito Santo que a conduz. Não tendo eu ainda participado nestas festas do divino Espírito Santo, tenho enorme curiosidade e espero poder participar no próximo ano. Quem sabe se este artigo ainda desperta um convite de algum açoriano a este pobre padre?

Termino com uma nota mais pessoal. A partir da minha experiência como padre, muito marcada pelas festas em honra de Nossa Senhora da Nazaré aqui nas paróquias da Ericeira e da Carvoeira entre 2016 e 2018, constato como é visível a presença de tantas pessoas que, embora afastadas da prática dominical, conservam este traço de religiosidade e participam na Missa de festa ou nas procissões de piedade popular. Talvez essa seja a tal «chama que ainda fumega» e que não devemos apagar (cf. Mt 12,20). Estas manifestações da Igreja em saída foram ocasião de tantos encontros inesperados com Deus, decisões de baptismo, casamentos, crismas, confissões, conversas e conversões que levaram ao regresso à comunidade paroquial e à Missa dominical. Tudo isto me convence a responder à pergunta inicial: sim, a piedade popular ainda tem futuro! Nestes tempos que convidam a um renovado entusiasmo missionário diante dos exigentes desafios que enfrentamos, a piedade popular surge como uma oportunidade de evangelização e caridade. Importa conhecê-la e promovê-la entre as novas gerações, numa experiência de sinodalidade e de intergeracionalidade extraordinária. Peçamos ao divino Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que reanime a Igreja neste tempo!

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