Sagrado Coração de Jesus – “sentimentalismo” ou algo mais?
10 de junho de 2021

O mês de junho é tradicionalmente dedicado ao Sagrado Coração de Jesus. Soa a sentimentalismo, mas esta devoção tem forte tradição na história da Igreja e muita riqueza e profunda ligação com a espiritualidade da Companhia de Jesus. Neste artigo, após breve exposição da história da devoção, procura-se refletir como esta pode iluminar a nossa experiência da fé cristã.  

A solenidade do Sagrado Coração de Jesus é celebrada anualmente na sexta-feira seguinte à Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Desde o princípio da história da Igreja houve lugar à contemplação do Coração de Jesus, no qual o discípulo amado reclinou a cabeça na Última Ceia (cf. Jo 13,23), e que foi trespassado pelo soldado Longino quando Jesus já estava morto na Cruz (cf. Jo 19,34). Porém, apenas no séc. XVII se difundiu esta devoção, a partir das visões místicas de Santa Margarida Maria Alacoque, monja do Convento da Visitação em Paray-le-Monial (França), cujo confessor era o padre jesuíta S. Cláudio la Colombière. Foi a ele que Santa Margarida Maria contou as visões do Coração de Jesus entre 1673 e 1675: um coração em chamas de amor e coroado de espinhos, do qual saía sangue e emergia a cruz.  

Acompanhando essas visões, Santa Margarida Maria ouviu a voz de Jesus, que lhe disse: «Eis o Coração que tanto amou os homens, que não poupou nada até esgotar-Se e consumir-Se, para manifestar-lhes o seu amor. E como reconhecimento, não recebo da maior parte deles senão ingratidões, desprezos, irreverências, sacrilégios, friezas que têm para comigo neste Sacramento de amor».    

Serão precisamente Santa Margarida Maria e São Cláudio la Colombière os grandes promotores da devoção ao Sagrado Coração desde então, mas só quase dois séculos mais tarde, em 1856, no pontificado de Pio IX, é que se tornará formalmente aprovada para todo o mundo. Desde então, todos os Papas têm dedicado atenção particular a esta piedade, tendo o Papa Pio XII escrito uma encíclica em que esclarecia o seu alcance e a defendia dos seus críticos, que a refutavam como inútil e sentimentalista “mais própria para mulheres do que para pessoas cultas” (cf. Haurietis  Aquas, número 6).  

Tendo presente este contexto, importa refletir sobre como esta devoção ao Sagrado Coração de Jesus ajuda a contemplar os mistérios da fé cristã. Sublinho quatro dimensões essenciais características da fé cristã:  

1) O Sagrado faz-se Carne:  

Este é um facto absolutamente essencial da fé cristã. Embora em relação à fé a maioria dos portugueses afirme que até “acredita em qualquer coisa” (notícia manchete do Diário de Notícias de 10 de agosto 2019), pela fé cristã acreditamos de modo concreto que Deus não é qualquer coisa, mas que Se revelou e Se deu a conhecer, entrando na história: «o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós» (cf. Jo 1,14). Em Jesus, o Sagrado faz-Se carne e já não está separado, mas faz-se homem e tem coração! Esta dimensão corpórea e tangível de Deus manifesta-se em toda a Sua vida como expressão máxima do amor de Deus por todos os homens. O diálogo com Tomé, a quem Jesus diz «chega cá o teu dedo (…) aproxima a tua mão e não sejas incrédulo, mas crente» (cf. Jo 20, 27), retratado no famoso quadro de Caravaggio, mostra o realismo da encarnação de Deus, que assume um Corpo e a Quem já se pode ver, tocar, conhecer e acreditar, reconhecendo-O pelas marcas da Paixão e pela Ressurreição.  

2) A Carne de Cristo é dada para a Comunhão;  

Deus não quer apenas ser visto e tocado, mas tem um coração que continua a bater, como sinal da Sua vida eterna. É muito significativo que a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus seja logo depois da festa do Corpo de Deus. Nesta celebramos a Presença Real e amorosa de Jesus connosco na Eucaristia, vivo e ressuscitado. Jesus promete estar sempre connosco até ao fim dos tempos (cf. Mt 28,20) e afirma: «Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo» (cf. Jo 6,51). Por mandato de Jesus – «fazei isto em memória de Mim» – esse pão consagrado em cada Missa como nosso Alimento para a Comunhão mantém a mesma aparência, mas pelo milagre da transubstanciação, já não é só pão, mas realmente o Corpo de Cristo, a Sua carne entregue por todos na Cruz.  

Ao longo da história, alguns milagres eucarísticos permitiram à ciência debruçar-se sobre este mistério da fé, pelo qual certas Hóstias consagradas mudaram não só de substância, mas também de aparência. Em particular, o milagre eucarístico de Lanciano, em Itália, permitiu descobrir que essa partícula de pão consagrado se transformou em carne de um tecido muscular do coração humano e vivo. Sendo o coração o centro da vida, é a própria vida de Cristo e o Seu coração vivo que recebemos ao comungarmos o Seu Corpo.  

3) A Comunhão é um transplante de Coração;  

O coração é o lugar metafórico das nossas paixões e centro de vida e de amor e é nesse órgão central que está a necessidade de cura e tratamento, sob perigo da própria vida interior se perder se deixamos de amar.  

Jesus, como Médico que vem para nos salvar da morte e do pecado, vem curar o nosso coração dessas “taquicardias” e “arritmias” que atingem a nossa vida espiritual e que nos impedem de amar e ver a Deus (cf Mt 5,8). Por 33 vezes Jesus se refere ao coração no Evangelho e faz o diagnóstico: «Do coração procedem as más intenções» (cf. Mt 15,19) e a indiferença e falta de fé vem da «dureza do vosso coração» (cf. Mt 19,8), no qual por vezes domina a perturbação e a tristeza (cf. Jo 14,1 e Jo 16,6).  

Em certo sentido, em cada Missa acontece então um transplante de coração, conforme a profecia do profeta Ezequiel: «Dar-vos-ei um coração novo e introduzirei em vós um espírito novo: arrancarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne» (cf. Ex 36,26).  

Esta imagem do transplante de coração enquadra até o recente pedido do Papa Francisco: «Que neste mês de junho, dedicado de uma forma especial ao Coração de Cristo, possamos repetir uma oração simples: ‘Jesus, faz com que o meu coração se assemelhe ao Teu’. Assim, também o nosso coração, pouco a pouco, se tornará mais paciente, mais generoso, mais misericordioso» (Tweet de 4 junho 2021).  

4) A devoção ao Sagrado Coração não é mero sentimentalismo  

Esta imagem do transplante de coração leva-nos ao último ponto: a fé cristã não é simples adesão ou assentimento meramente racional a um conjunto de verdades religiosas acerca de Deus e do homem, mas quer ser encarnada na vida de cada fiel e nas suas obras.  

Se é certo que há momentos de aridez na vida espiritual e não podemos ficar reféns dos sentimentos e das consolações, mas prosseguir caminho com fidelidade mesmo aí, é certo também que a fé cristã é uma experiência sensível e gozosa do amor de Deus, que tem um “coração misericordioso” (cf. Lc 1,78). Essa experiência amorosa de Deus, que pode acontecer na oração ou nos sacramentos, em momentos de contemplação, de imensa alegria ou de dolorosa dificuldade, marca o encontro com Jesus vivo e ressuscitado, com um Deus que tem coração. Dizia o Papa Bento XVI: «Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo.» (Deus caritas est, 1).  

O transplante de coração dá-nos esse horizonte de conversão e mudança de vida que Jesus deseja ver em nós. S. Paulo aludia: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (cf. Gal 2,19). A dinâmica da encarnação continua a acontecer em cada cristão que deixa receber um novo coração.  

Assim, podemos cantar como no hino da liturgia das horas, «um novo coração me dá Senhor, o qual a Ti só tema, a Ti só ame, a Ti meu Deus, meu Pai, meu Redentor».


Artigo do Pe. Tiago Fonseca para o Pontos sj